sábado, 10 de outubro de 2009

A azul o devaneio

"(...) é preciso que mendigue o meu pão, até que possa ganhar a vida. Não podia ser de outro maneira.
- Meu amigo - disse-lhe o orador -, acreditais que o papa seja o Anticristo?
- Ainda não o tinha ouvido dizer - respondeu Cândido -, mas quer o seja, quer não, preciso de comer.
- Tu não mereces que te dêem de comer - disse o outro. - Vai-te, patife; sai daqui, miserável, não me voltes a aparecer." Chamo a polícia, que está ali à frente.
A mulher do orador, tendo aparecido à janela e apercebendo-se de que havia um homem que duvidava que o papa fosse o Anticristo, despejou-lhe em cima um vaso cheio de imundíces. Oh, Céus, a que excessos o zelo da religião leva as damas!
Um homem que não tinha sido sequer baptizado, um bom anabaptista, chamado Tiago, viu a maneira cruel e ignominiosa como era tratado um dos seus irmãos, um bípede sem penas, que tinha uma alma. Levou-o para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, fez-lhe presente de dois florins e ofereceu-lhe mesmo trabalho nas suas manufacturas de tecidos persas que se fabricam na Holanda. Cândido, quase se ajoelhando diante dele, exclamou:
- Bem me havia dito mestre Pangloss que tudo se passa pelo melhor neste mundo, porque estou infinitamente mais tocado pela vossa generosidade do que pela dureza daquele senhor de manto negro e da senhora sua esposa.
No dia seguinte, quando passeava pelas ruas, encontrou um pedinte coberto de pústulas, de olhar amortecido, a ponta do nariz roída, a boca torcida, os dentes negros, falando pela garganta e atacado de uma tosse tão violenta que escarrava um dente de cada vez que tossia.

1 comentário:

  1. "li" também a omissão, a táctil e implícita ameaça do cassetete...

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