quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Sr Valéry desenha, eu não...

Quando li o livro Sr. Valéry do Gonçalo M. Tavares tive imediatamente vontade de escrever umas tantas histórias. Os melhores livros são os que nos fazem cócegas e nos obrigam a coçar. Lembrei-me imediatamene disto quando me "obrigaram" a desenhar na sessão da semana passada. Porque o Sr. Valéry desenha sempre para explicitar o seu modo de pensar.

Uma das histórias que escrevi utiliza como ponto de partida um diálogo semi-real entre um entrevistador da Pública e Vicente Todoli, anterior Director de Serralves. Como não desenhei, alguém se atreve?

1. Variações imaginárias em torno de um diálogo real com Vicente Todoli

...
Vicente Todoli – Já viram, é uma cadeira em negativo. Que engraçado... Gostaram?
Entrevistador – Mas é isso Arte?
Vicente Todoli – Arte é tudo aquilo que um artista diz que é Arte! Tal como Literatura é aquilo que o escritor diz que é Literatura.
Entrevistador – Mas pode chegar o momento em que podemos distinguir, em que já podemos dizer se é Arte ou não é Arte...
Vicente Todoli – Não, isso é uma coisa que cabe ao artista decidir.
Entrevistador – E quem são os artistas?
Vicente Todoli – Aqueles que produzem obras de Arte!
Entrevistador – Mas disse-me já que a Arte pode ser boa ou má!
Vicente Todoli – Claro, a Barbara Coutland também é literatura, só que é lixo!
Entrevistador – Qual é então a Arte boa?
Vicente Todoli – É trivial! A Arte boa é aquela que um artista bom diz que é Arte boa!
Entrevistador – Lembro-me também de ter utilizado a expressão de genial quando passámos por uma obra de Bacon.
Vicente Todoli – Sim, sim, Bacon era um artista genial!
...

2. Onde o Sr. Valéry entra em cena
O Sr Valéry, lembram-se, era um senhor pequenino mas que dava muitos saltos.
Ele explicava:
- Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo.
Mas esta solução engenhosa satisfez o Sr. Valéry durante pouco tempo. Um dia o Sr. Valéry leu a entrevista de Todoli e ficou entusiasmado. Sempre desejara ser artista. Mas queria ser um artista extraordinário. Para ser artista não precisava de saltar. E a verdade é que saltar a toda a hora o cansava. E o Sr. Valéry desenhou.

O Sr. Valéry nunca conseguira deitar nada fora. Tinha o apartamento atafulhado com todo o tipo de lixo: garrafas e embalagens vazias, jornais e revistas, caixas, caixotes, roupa velha.
Juntou tudo no hall de entrada do prédio e colou uma pequena etiqueta na parede, junto à porta do elevador.

"Instalação “Cidade Surda XXV” do artista extraordinário Sr. Valéry.

Os vizinhos do S. Valéry, uns ignorantes, pois não tinham lido a entrevista, não acharam graça e mandaram chamar o carro do lixo que carregou a obra de arte e a enfiou na lixeira municipal.
E o Sr. Valéry, para além de os ouvir, felizmente era pequeno e as ondas passavam-lhe quase todas por cima da cabeça, teve de ir a pé até à lixeira – o Sr. Valéry vai a pé a todo o lado. Vai sempre a pé e tem boas razões para isso. No espaço da lixeira encontrou um monte de lixo parecido com o seu mas, desgostoso, teve de reconhecer que a obra de arte se perdera, pois o monte tinha sido feito pelos lixeiros e não por um artista.
O Sr. Valéry regressou a casa e no caminho entrou numa livraria. Comprou o “Anuário de Artistas Contemporâneos”. Folheou até encontrar a letra V. Nada! Estaria no S de Sr? Procurou. Nada! Valéry não aparecia! Ainda pensou apresentar queixa a um comissário que conhecia, mas a esquadra era demasiado longe.
O Sr. Valéry nunca mais guardou lixo.

2 comentários:

  1. E quem decide que lixo é lixo? O lixeiro? Não, não nos parece. Simplesmente porque, ainda que lhe seja reconhecida uma autoridade inquestionável, como a qualquer profissional, nunca lhe foi conhecida qualquer “aura”: simplesmente “põe-se em campo”.

    “As obras de arte podem ser compreendidas como o resultado das actividades coordenadas de todos os agentes cuja cooperação é necessária para que a obra de arte seja o que é” (H.S.Becker cit por Bourdieu). Em As regras da Arte, Bourdieu propõe “a ideia de campo” como “instrumento da ruptura com todas as visões parciais”, o que torna fatal a manutenção da “aura”, tornada quebradiça, depois de tanto repasto estaladiço.

    O lixo, dentro ou fora do contentor, derramado, esquecido, misturado, separado para reciclagem… parece estar pacificamente resolvido, legislado, contratado. Ou não? Não foram por acaso, as acções de formação, para lixeiros, sobre arte contemporânea.

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  2. Quem decide se lixo é lixo ou é Arte é o Alto Comissário das Decisões Importantes sobre Arte

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