sexta-feira, 30 de outubro de 2009

[epílogo em forma de introdução]

A criatividade não tira do nada: tira de tudo!
Nesta primeira edição do workshop, pensei pôr na mesa um conjunto de aspectos heterogéneos, escolhidos de uma paleta enorme de possibilidades. Assim, partimos, por vezes, de aspectos mais específicos, outras vezes alojámo-nos em questões mais abrangentes ou até banais. Entre um esboço à vista e um esquema apontado, entre uma palavra saída do dicionário e uma frase tirada do bolso, entre trocas, olhares, gestos... dialogámos através do óbvio, do estranho, do previsível, do imprevisto.Terá sido tudo isto importante? Insignificante? Dispensável? Indispensável? Talvez um pouco de tudo: sentimos sempre na pele a marca deste harmónio, deste “tudo-nada” que nos põe a mexer e nos traz sensíveis ao útil e ao inútil. Pretendi, acima de tudo, que nos mantivéssemos disponíveis para fazer juz à grande disponibilidade com que a escrita e o desenho se nos oferecem. O desenho e a escrita desenvolvem-se entre a dificuldade e a facilidade, entre o prazer e a dor, entre a frustração e o entusiasmo, entre o importante e o irrelevante, entre o aproveitar e o deitar fora, entre a extensão da procura e a intensidade do encontro... O entusiasmo de quem se juntou nestas sessões fixou-se numa erva aromática, entregue aos cuidados do alfobre da Reitoria. Semear é significar: signi-ficaremos a partir de agora nos sentidos que construímos. Foi muito fácil gostar de vos ter conhecido mas é sempre difícil gostar de despedidas.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Perdi a visão

Perdi a visão.
Não ceguei; só não cheguei a ir.
Só, no meu sentir,
Sócio unipessoal da minha percepção.
Por sorte, já tinha aguçado os demais sentidos,
Logo, sem Norte não fiquei.
Os meus olhos não estavam perdidos,
O meu logos é que eu não sei.
Talvez descompensado,
Mais escuro, certamente
Ou não lhe faltasse o primado da luz.
Os olhos que não vêem nem sabem o que perdem.
Perdem os sonhos, como os perdem os que não descortinam
Os labirintos que a ilusão de óptica lhes coloca.
Labirintos da verdade, há que encará-los com humildade.
Não se pode ir com muita sede ao pote
Para não morrer pela boca,
Como o peixe.
Por vezes, há que fechar os olhos,
Não ir atrás de qualquer feixe.
No fundo, permanecer na toca
Com menos olhos do que barriga.
Perdi a visão,
É uma pena, uma perda aborrecida
Mas o labirinto continua a ter saída.
Vou apalpando, vou estar atento à ressonância…
Cheira-me que a verdade vai ser saborosa.
Mesmo sem a ganância do olhar
Lá consegui desatar os nós.
Tenho os sentidos em polvorosa,
O corpo assolado por um arrepio fulminante.
A verdade sabe bem.
E num instante, eu vejo:
Ela sabe
Ela cheira
Ela soa
Ela toca
Ela sente como cada um de nós.

domingo, 25 de outubro de 2009

Palavra "Bonito".

"Imagem" de rio bonito.
"Bons olhos te vejam olhar serpente", verde, bonitão!
"Cego é aquele que não vê com o coração." Que bonito! Mas, longe da vista, longe do coração.
"Olho" bonito o do rapaz que perdeu o outro!
"Perfil". Voltaire não é bonito, parece uma mulher.
"O olhar mata", não é nada bonito que isso aconteça.
"Olha-me nos olhos e diz-me o que sentes." Bonito seria que dissesses o que quero ouvir, mas já estou a ver tudo.
"Visão" É uma boa publicação, bonito seria que mais a lessem.
"O que os olhos vêem o coração sente". Era bonito que o coração, por cada vez que os olhos vissem, sorrisse.
"Olhar". É bonito, sim, olhar à queima-roupa, é bonito, resulta sempre numa reflexão filosófica: «Porquê?»

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

[aforismos de aforro]

Na economia da linguagem (injustamente confundível com a linguagem da economia?), o aforismo é uma poupança bem vinda. Exemplos surgidos na sessão de ontem, que podemos meter na ranhura do mealheiro e continuar, até o encher (para pagar em géneros a quem os quiser ler):

Ver é desejar.
Observar é desenvolver-te na minha alma.
Blue Eyes é demais.
Para olhar dentro de ti é preciso coragem para desvendar mistério.
O teu olhar é deslumbrante, queima sem tocar.
Olhar sem ver é um defeito muito comum de quem não acredita.
Olho por olho, dente por dente, é o lema de muita gente.
É com muito agrado que hoje te vejo, leve como o vento.
O coração é um desenho que não se contém.
Tudo o que vemos são formas de olhar.
O esboço é um olhar que não quer acabar.
O contorno é que policia a visão.
Cair na cegueira é ceder ao abismo que é a visão.
A sensação plena é atingível, mas não conheço ninguém que a tenha atingido.
Nunca conheci o preto, mas há quem diga que não há nada como breu.
Tentei levar o passeio avante, mas quando reparei, ainda não tinha nascido e já o filho era maior do que o pai.
Nunca vou acreditar no que digo, tão pouco no que vejo.
O sapo encontrou a borboleta e disse: quem te viu e quem te vê!
O miradouro vigia a paisagem, regista-a, grava o assobio do vento e exclama: oh!
O visionário é quem olha com os outros , mas vê antes deles.
O melhor bisturi é o olho clínico.
Não me vigies a mim, vigia antes o outro.
Desenhar não é ver, é apalpar o mundo.
O amor é cego, não desenha.
Para reconhecer o objecto basta olhar, para ver é preciso esquecê-lo.
Paro, escuto, olho, mas não vejo o que está lá.
Na terra do amor, quem é cego, ama.
É preciso olhar para encantar.
Em terra de cegos, precisas pelo menos de um olho, para seres rei.
Quando a memória sente que precisa do desenho.
É preciso olhar para ver.
Muito desenhar para pouco restar.
Quanto mais olhas menos vês.
Olha e diz-me o que não vês.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Tom Waits - Musica com 5 (mil) sentidos

Tentando não fugir muito aos temas recentemente aqui abordados (ou nem por isso), deixo aqui uma novidade (que se calhar não será novidade para todos...). Tom Waits vai editar um novo album. Trata-se de um disco duplo, ao vivo, intitulado Glitter and Doom Live, que reúne temas tocados ao vivo, nos EUA e na Europa, durante a digressão de 2008. O disco vai ser lançado a 24 de Novembro, mas é possível fazer o download gratuito de 8 faixas do álbum, aqui.

Confesso que posso ser um pouco suspeito para falar de Tom Waits. Contudo, e aí é que reside o interesse em divulgá-lo aqui no blog, Tom Waits tem a rara capacidade de, através da sua música, criar todo um universo visual único. É para mim impossível ouvir uma música de Tom Waits sem conceber mentalmente um milhão de imagens provenientes do seu mundo fantástico, surreal, circense por vezes. Talvez motivado pelas suas incursões no cinema, e aí Jim Jarmush terá uma influência fundamental. A sua voz, mais do que rouca ou grave, é áspera, rugosa, cavernosa, e transporta-nos para o domínio do tacto, o que também justifica esta minha incursão.

Deixo-vos com dois vídeos, o primeiro, a cena inicial do filme Down By Law, de Jim Jarmush, com música de Tom Waits, Jockey Full of Bourbon. O segundo, ao vivo em Paris, Lucinda/Ain’t Goin Down.



quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O Sr Valéry desenha, eu não...

Quando li o livro Sr. Valéry do Gonçalo M. Tavares tive imediatamente vontade de escrever umas tantas histórias. Os melhores livros são os que nos fazem cócegas e nos obrigam a coçar. Lembrei-me imediatamene disto quando me "obrigaram" a desenhar na sessão da semana passada. Porque o Sr. Valéry desenha sempre para explicitar o seu modo de pensar.

Uma das histórias que escrevi utiliza como ponto de partida um diálogo semi-real entre um entrevistador da Pública e Vicente Todoli, anterior Director de Serralves. Como não desenhei, alguém se atreve?

1. Variações imaginárias em torno de um diálogo real com Vicente Todoli

...
Vicente Todoli – Já viram, é uma cadeira em negativo. Que engraçado... Gostaram?
Entrevistador – Mas é isso Arte?
Vicente Todoli – Arte é tudo aquilo que um artista diz que é Arte! Tal como Literatura é aquilo que o escritor diz que é Literatura.
Entrevistador – Mas pode chegar o momento em que podemos distinguir, em que já podemos dizer se é Arte ou não é Arte...
Vicente Todoli – Não, isso é uma coisa que cabe ao artista decidir.
Entrevistador – E quem são os artistas?
Vicente Todoli – Aqueles que produzem obras de Arte!
Entrevistador – Mas disse-me já que a Arte pode ser boa ou má!
Vicente Todoli – Claro, a Barbara Coutland também é literatura, só que é lixo!
Entrevistador – Qual é então a Arte boa?
Vicente Todoli – É trivial! A Arte boa é aquela que um artista bom diz que é Arte boa!
Entrevistador – Lembro-me também de ter utilizado a expressão de genial quando passámos por uma obra de Bacon.
Vicente Todoli – Sim, sim, Bacon era um artista genial!
...

2. Onde o Sr. Valéry entra em cena
O Sr Valéry, lembram-se, era um senhor pequenino mas que dava muitos saltos.
Ele explicava:
- Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo.
Mas esta solução engenhosa satisfez o Sr. Valéry durante pouco tempo. Um dia o Sr. Valéry leu a entrevista de Todoli e ficou entusiasmado. Sempre desejara ser artista. Mas queria ser um artista extraordinário. Para ser artista não precisava de saltar. E a verdade é que saltar a toda a hora o cansava. E o Sr. Valéry desenhou.

O Sr. Valéry nunca conseguira deitar nada fora. Tinha o apartamento atafulhado com todo o tipo de lixo: garrafas e embalagens vazias, jornais e revistas, caixas, caixotes, roupa velha.
Juntou tudo no hall de entrada do prédio e colou uma pequena etiqueta na parede, junto à porta do elevador.

"Instalação “Cidade Surda XXV” do artista extraordinário Sr. Valéry.

Os vizinhos do S. Valéry, uns ignorantes, pois não tinham lido a entrevista, não acharam graça e mandaram chamar o carro do lixo que carregou a obra de arte e a enfiou na lixeira municipal.
E o Sr. Valéry, para além de os ouvir, felizmente era pequeno e as ondas passavam-lhe quase todas por cima da cabeça, teve de ir a pé até à lixeira – o Sr. Valéry vai a pé a todo o lado. Vai sempre a pé e tem boas razões para isso. No espaço da lixeira encontrou um monte de lixo parecido com o seu mas, desgostoso, teve de reconhecer que a obra de arte se perdera, pois o monte tinha sido feito pelos lixeiros e não por um artista.
O Sr. Valéry regressou a casa e no caminho entrou numa livraria. Comprou o “Anuário de Artistas Contemporâneos”. Folheou até encontrar a letra V. Nada! Estaria no S de Sr? Procurou. Nada! Valéry não aparecia! Ainda pensou apresentar queixa a um comissário que conhecia, mas a esquadra era demasiado longe.
O Sr. Valéry nunca mais guardou lixo.

Candidices (ou não dizes)


"(...) Conegundes, de dezassete anos, era corada, fresca, gorda, apetitosa. O filho do barão parecia em tudo digno do pai. O perceptor Pangloss era o oráculo da casa e o pequeno Cândido escutava-lhe as lições com a toda a boa-fé da sua idade e do seu carácter." Todos se encontravam, arrepanhados de frio, na áspera rugosidade do salão, arranhando-se discretamente entre si.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

[a ciência das listas]

LimãoSuorAçúcarCasca de laranjaQueijo da SerraVinagreSalMelBacalhauTremoçoPresuntoLeitePãoChocolateToranjaÓleo de fígado de bacalhau BiscoitoCaféÁgua ardenteIogurteTarteBatido natural de morango e kiwiIogurte estragadoAmêndoaCervejaMaracujáMorteSolVidaMãosBeijoRancorDespedidaTristezaCacauSexoVerdeTraiçãoMimoBeijo amorosoPerdaLixaUvasNudezMarSolidãoLágrimaCaríciaCiúmeDomingoRemorsoTrabalho BrisaDorRevêsCorpoFracassoVómitoTangoChoroDiscussãoDoençaO nãoO êxito trabalhadoA almofada da infânciaUma viúvaCertas velhicesA realizaçãoTrabalhoBerrosPé torcidoAmargura Madeira lascada comida apodrecidaVento vindo do marLágrimas minhasUm esgar de desprezoLuz matinalO arroz é doce como amargo é o teu olhar doce

Poderia esta lista figurada.literal surgida na primeira sessão (paladar), ser enviada para o espaço ("devidamente traduzida") para falar de nós a estranhos? Ou para dizer coisas estranhas (indevidamente traduzidas, naturalmente) falando de nós a quem nos é familiar?

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

[os outros dos outros pelos outros]

Os outros-mesmos na voz dos seus próprios-outros (escritores):

"Al otro Borges es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en la terna de profesores o en un dicionario biográfico" Jorge Luis Borges

"Cuando yo era chico tenía la esperanza - contra todo lo que pudiera esperarse - de ser varias personas. Ser una sola me parecía muy poco" Bioy Casares

in "El Oficio de Escritor" selecção de Ana Ayuso, Ed. y Talleres de Escritura Creativa Fuentetaja, Madrid, 1997 (todos lemos castelhano, prefiro servir o texto sem tradução nem macarrão)

[retroactivos e proactivos]

Na última sessão tinha um aforismo para vos oferecer, ficou fechado até ao fim sobre a cadeira [talvez] mais a sul da sala: "A realidade é invisível: só pelo tacto se chega ao facto."

Junto a esta opacidade retroactiva uma transparência proactiva, de Almada Negreiros, para pôr a norte na próxima sessão: " O que o olhos vêem só o desenho sabe".
Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Herberto Hélder

sábado, 10 de outubro de 2009

A azul o devaneio

"(...) é preciso que mendigue o meu pão, até que possa ganhar a vida. Não podia ser de outro maneira.
- Meu amigo - disse-lhe o orador -, acreditais que o papa seja o Anticristo?
- Ainda não o tinha ouvido dizer - respondeu Cândido -, mas quer o seja, quer não, preciso de comer.
- Tu não mereces que te dêem de comer - disse o outro. - Vai-te, patife; sai daqui, miserável, não me voltes a aparecer." Chamo a polícia, que está ali à frente.
A mulher do orador, tendo aparecido à janela e apercebendo-se de que havia um homem que duvidava que o papa fosse o Anticristo, despejou-lhe em cima um vaso cheio de imundíces. Oh, Céus, a que excessos o zelo da religião leva as damas!
Um homem que não tinha sido sequer baptizado, um bom anabaptista, chamado Tiago, viu a maneira cruel e ignominiosa como era tratado um dos seus irmãos, um bípede sem penas, que tinha uma alma. Levou-o para casa, limpou-o, deu-lhe pão e cerveja, fez-lhe presente de dois florins e ofereceu-lhe mesmo trabalho nas suas manufacturas de tecidos persas que se fabricam na Holanda. Cândido, quase se ajoelhando diante dele, exclamou:
- Bem me havia dito mestre Pangloss que tudo se passa pelo melhor neste mundo, porque estou infinitamente mais tocado pela vossa generosidade do que pela dureza daquele senhor de manto negro e da senhora sua esposa.
No dia seguinte, quando passeava pelas ruas, encontrou um pedinte coberto de pústulas, de olhar amortecido, a ponta do nariz roída, a boca torcida, os dentes negros, falando pela garganta e atacado de uma tosse tão violenta que escarrava um dente de cada vez que tossia.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O meu Cândido - uma contribuição muito responsável

(...) Expulso do paraíso terrestre, Cândido caminhou durante muito tempo, sem saber por onde, chorando, erguendo os olhos ao céu, voltando-se muitas vezes para o mais belos dos castelos, que encerrava nos seus muros a mais bela das baronesazinhas. Dormiu sem cear no meio dos campos, entre dois regos. A neve tombava em grandes flocos. Cândido acordou, noite cerrada, transido de frio. Esticou os braços quase dormentes e sentiu um calor morno na ponta dos dedos. Mergulhou as mãos, geladas pela neve, numa pasta agradável. Trouxe as mãos à cara, para a aquecer, e só então se apercebeu de que as vacas tinham andado por ali. Esfregou as mãos na neve e sorriu satisfeito, um sorriso tímido, gelado pelas mãos, porque aquele acidente acontecera porque tinha que acontecer. Bem lhe havia dito mestre Pangloss que tudo se passa pelo melhor neste mundo...

A partir de passagem de Cândido de Voltaire

O outro

Este poema de Mário de Sá-Carneiro tem sido central na minha vida. É um dos dois poemas que sempre soube de cor. Por isso escolhi esta canção. Além do mais, gosto muito da Adriana. Percebe-se cada palavra que pronuncia. Pena que só encontrei um extracto de 30 s.


O Outro (Live) - Adriana Calcanhotto

Uma contribuição irresponsável

(...) "Pediu esmola a várias personagens graves, que, sem excepção, lhe responderam que, se continuasse a mendigar, o meteriam numa casa de correcção, para lhe ensinar um meio de vida.
Dirigiu-se em seguida a um homem que acabara de falar durante uma hora inteira, numa grande assembleia, pregando a caridade. Este orador, olhando-o de través, disse-lhe:
- Que vindes aqui fazer? Estais aqui para a boa causa?
- Não há efeito sem causa – respondeu Cândido com modéstia." – O frio deixa-me doido. Arrasto-me em arrepios há duas horas. (...)

Divagando sobre o Cândido

(...) "O Sr. Barão era um dos mais poderosos senhores da Vestefália, porque o seu castelo tinha uma porta e algumas janelas. O salão era até ornado com uma tapeçaria" aveludada, não, bem felpudinha, que até dava vontade de se enroscar nela, formando como que o maior, o mais fofo, alegre dos novelos, e o mais espesinhável também, se tivermos em conta a sua situação.

Para reflectir...

Caros(as) "blogueiros(as)" e colegas(os) de workshop,
Estava a ler o recomendável livro "A vontade de representação", do Professor Bernardo Pinto de Almeida, editado pelo Campo das Letras em 2008, e encontrei lá uma citação de Novalis que me parece particularmente pertinente, se tivermos em conta os campos explorados no nosso workshop (também ele recomendável, diga-se de passagem), e por isso a decidi publicar neste espaço, que vou caracterizar como... recomendável, para que possamos reflectir sobre ela. Diz o seguinte:
"What is visible may contain the invisible; what is audible, the inaudible; what is palpable the impalpable. Perhaps also what is thinkable may contain the unthinkable",
Novalis

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

O vaso

Foi esta história, mais coisa menos coisa, que escrevinhei, no fim da 2ª sessão, para responder ao desafio do Emílio.

O vaso e a castanha

Há muito que R. evitava ir ao Bar do Desejo. Passava bem sem desejos, que sabia lhe traziam tristezas à boca. Depois tinha de as engolir e ficava com um sabor azedo, ou seria amargo, debaixo da língua. Mas naquele dia não conseguia dormir, levantou-se cedo, os seus passos levaram-no e ele quase não resistiu. Seria o que teria de ser. Chegado ao bar à beira mar, deitou-se na areia e fechou os olhos. Estava quase a adormecer quando sentiu um ligeiro roçar na mão esquerda. Abriu os olhos e viu um papel que tinha sido trazido pelo vento. Moveu os dedos para o agarrar. Ia colocá-lo no bolso para o deitar ao lixo e o impedir de continuar o voo aleatório na praia. Reparou que tinha um texto escrito:

Vai ao Jardim das Sombras. Entra pelo lado do sol nascente, conta três carvalhos, vira à esquerda e conta dois castanheiros. Num vaso de barro encontrarás o teu futuro


R. sorriu, pensando tratar-se de uma brincadeira, mas no Bar do Desejo os desejos são sereias que nos encantam. O Jardim das Sombras era muito perto. R. ergueu-se e pensou "Bem, não tenho nada para fazer, enquanto vou, passeio". Percorreu a marginal, deserta àquela hora, atravessou-a e entrou no jardim. Nunca lá tinha estado assim tão cedo, com o jardim vazio de gente e cheio de pássaros e de sombras. A sua sombra ia à sua frente mais afoita do que ele. Contou os três carvalhos e virou à esquerda. A sombra, que era teimosa, prosseguiu o seu caminho. R. contou dois castanheiros e viu um vaso grande, em barro vermelho, cheio de terra, mas onde nada parecia ter sido plantado. R sorriu de novo e disse com os seus botões "O futuro... Valeu pelo passeio!". Os botões aproveitaram a deixa e desapertaram-se. Tinha decidido continuar o passeio no jardim, mas parou para apertar os botões desapertados, pois o ar da manhã na sombra era fresco. Ao baixar o olhar, viu no chão, junto ao vaso, uma castanha. Tomado por um impulso, apanhou-a, meteu a mão na terra do vaso, remexeu-a e plantou a castanha. Pareceu-lhe sentir um leve cheiro a castanhas assadas e a jeropiga. A jeropiga era doce, não era azeda, ou deveria dizer amarga...

A primeira história - Uma nêspera que não era

Tal como se afirma na descrição do blog ele pretende ser uma ferramenta nas mãos, nos olhos, na boca , nos ouvidos e nos olhos dos participantes na oficina Cinco [Mil] Sentidos. Ele será o que nós todos quisermos que ele seja.

Eu por mim senti uma necessidade enorme, logo que saí da primeira sessão na Reitoria, de escrever uma pequena história. Saiu-mee quase de rajada quando cheguei a casa e me sentei à frente do teclado. Este é o local para a partilhar. Fico à espera das vossas

A (-A + O) nêspera (- ê + a – s – a + o + n)

R. estava à mesa sentado, muito calado, à espera de ver o que acontecia. Como não acontecia nada, nem havia chá para beber, R. escreveu um poema num belo naperon redondo. Dobrou-o em forma de avião e lançou-o da janela. O avião flutuou, sobrevoou a cabeça de um leão e caiu na calçada. Uma velha*, assustada pelo naperon, que lhe flutuou à frente dos olhos, antes de lhe cair à frente dos pés, gritou “Olha um Naperon!”, mas não o comeu. A velha bem procurou o bolo, mas o bolo não estava, e a velha pensou “É de certeza um naperon dos espanhóis, porque os naperons dos portugueses têm sempre um bolo por cima” e, irritada, engoliu o poema, limpou a boquinha ao naperon e deitou-o ao chão, sujo de batôn.
É o que acontece aos poemas de naperon que estão no chão, deitados, à espera do que acontece.


*Nota do editor: Esta velha não é a mesma velha da nêspera. É outra.